terça-feira, 29 de novembro de 2016

Ela é tão sua


Roberta acordou em mais um dia daquele final de semana. O chão do quarto todo bagunçado com suas roupas, maquiagens espalhadas sobre a cômoda, o notebook num canto da cama e uma embalagem vazia de pizza sobre o criado. Nem sabia que horas eram, mas tinha certeza que já passava das 14h quando viu o sol pela janela do quarto. 

Não fazia questão de se importar muito com o horário que acordava, e nem dava permissão a ninguém para dizer se isso era certo ou errado. O fato é: que não ser de ninguém, lhe permite ser o que quiser durante longas horas do dia, durante longos dias da semana e assim por diante.

Na casa de sua avó era sempre a mesma história: Quando que você vai ser de alguém?
Aí ela torcia o nariz e mudava de assunto. Alguns anos atrás a resposta era "Quando terminar a faculdade". Mas agora com o fim dos estudos, bem sucedida na carreira, as respostas pareciam mais difíceis. Na verdade ela estava mais preguiçosa para pensar num argumento válido para aquelas senhoras presas ao que era lei da vida.

Era comum ser indagada sobre essas coisas. Todo mundo naquela família pertencia a alguém. Julia pertencia ao Beto há mais de doze anos, o João estava muito bem sendo propriedade de Beatriz. E até o Luan (quem diria!?) era do Carlos. Só ela, no auge dos seus trinta e tantos, ainda não era de ninguém.

Não que fosse falta de tentativas, Ela até já tentou, como todas as outras pessoas. Uma, duas, três ou quatro vezes. Mas ser de alguém é bem difícil quando você está tão habituado a ser somente seu. Roupas no chão precisam de respostas, louça suja na pia precisa de argumento e até dormir mais cedo gera questões. Ela não conseguia se sentir bem assim.

Ser de alguém é como assumir para todo mundo que "uma compra foi realizada com sucesso" e aquele pagou pelo preço e te levou pra casa. E não interessa você dizer que não existe preço, sempre há algo que paga o seu valor, até você esquecer completamente dele e deixar que o outro controle cada minuto do que antes era somente seu.

Não com ela, isso não era pra ela. Já escreveu alguns livros, publicados ou não, sobre corpos de outras pessoas. Esses marcavam histórias que ficam ótimas apenas em uma página, não em 365, e nem em números maiores que este. Ela era tão dela, que ser de alguém soava tão esquisito, tão submisso, tão parte de uma lei das senhoras que seguem as normas da vida.

Era tão mais simples sair do trabalho às 19 horas e ligar para alguns amigos. Ou dirigir o seu carro até aquele destino que não precisa contar a ninguém. Conhecer pessoas na mesa de um bar, numa noite na boate ou apenas no ambiente de trabalho. Ser o sexo num dia, o carinho no outro e nada mais além disso.

Se tudo isso soa tão simples ao seus ouvidos, porque não conseguiria responder uma pergunta tão simples como aquela?  Qual é o problema de não ser de ninguém? Onde está a cláusula no contrato da vida que diz que você tem que ser propriedade dos outros e não somente sua? Porra, deixa essa garota em paz! Deixem todos os donos de si mesmo cuidarem da sua própria bagunça.

Ela não era de mais ninguém fazia um bom tempo. E quando tentava ser, ela deixava de ser o que era, e isso era a maior pena para todos que a amavam do jeito que ela se construiu. Porque Roberta era uma garota como qualquer outra, era um cara que saia sozinho ou você mexendo no seu celular enquanto ri alto, Roberta era tudo o que restou do que a vida lhe ensinou, melhor que isso, ela era tudo que construiu durante o tempo que os outros se tornavam o resto de seus problemas.

Às vezes se perguntava se os outros sabiam o tesão que era ser assim. E apenas ria sozinha durante um filme, chorava no último episódio da sua série favorita, enquanto ninguém estava ali para perguntar o porquê daquilo.

Desculpem-me senhoras, mas enquanto vocês insistiam que ela não era de ninguém.
Ela continuava sendo tão dela, que jamais se colocaria a venda na vitrine.
E era uma delicia ser assim.


- Ah, eu estou sendo tão minha ultimamente, que esqueci de me preocupar com isso.

E todos na sala mudaram de assunto.

Imagem: YourTango

Marcadores: , ,